quinta-feira, 29 de julho de 2010

A beleza dos pássaros em voo ( parte II) Rubem Alves


Aves transformadas em mistérios,
palavras configuradas como gaiolas.



Tentar descrever os grandes enigmas da vida
torna a experiência menos bela



Desviei-me de uma das mais influentes escolas da Teologia contemporânea que, sob a inspiração da espiritualidade do martírio, só tinha olhos para a coroa de espinhos, para os cravos e para as feridas, e não tinha olhos para a flor.


Assim, abandonei as inspirações éticas e políticas da Teologia – justificação pelas obras - e deixei-me levar pela felicidade estética – justificação pela graça. Alegria para os olhos, alegria para o corpo. Deus, em oposição aos seus adoradores, que fecham os olhos para vê-Io melhor, abre os seus e se alegra. O ato de ver é uma oração. O visível é o espelho onde Deus aparece refletido sob a forma de beleza. Deus é um esteta.


A literatura me chegou sem que eu esperasse, sem que eu preparasse o seu caminho. Chegou-me através de experiências de solidão e sofrimento. A solidão e o sofrimento me fizeram sensível à voz dos poetas . A decisão foi tomada depois de completar quarenta anos: não mais escreveria para os meus pares do mundo acadêmico, filósofos ou teólogos. Escreveria para as pessoas comuns. E que outra maneira existe de se comunicar com as pessoas comuns senão simplesmente dizer as palavras que o amor escolhe?


Toda alma é uma música que se toca. Quis muito ser pianista. Fracassei. Não tinha talento. Mas descobri que posso fazer música com palavras. Assim, toco a minha música... Outras pessoas, ouvindo a minha música, podem sentir sua carne reverberando como um instrumento musical. Quando isso acontece, sei que não estou só. A poesia revela a comunhão.


O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias – imagens modeladas pelo desejo – diante do assombro que é a vida. Se o Grande Mistério, vez por outra, faz ouvir a sua música nos interstícios silenciosos das minhas palavras, isso não é mérito meu. É graça. Esse é o mistério da literatura: a música que se faz ouvir, independentemente das intenções de quem escreve.


Escrevi, faz muitos anos, um estória para a minha filha de quatro anos. Era sobre um Pássaro Encantado e uma Menina que se amavam. O Pássaro era encantado porque não vivia em


gaiolas, vinha quando queria, partia quando queria... A Menina sofria com isso, porque amava o Pássaro e queria que ele fosse seu para sempre. Aí ela teve um pensamento perverso: "Se eu prender o Pássaro Encantado numa gaiola, ele nunca mais partirá, e seremos felizes, sem fim..." E foi isso que ela fez. Mas aconteceu o que ela não imaginava: o Pássaro perdeu o encanto. A Menina não sabia que, para ser encantado, o Pássaro precisava voar...


Dei-me conta de que essa estória é uma parábola da Teologia. Existe sempre a tentação de prender o Pássaro Encantado, o Grande Mistério, em gaiolas de palavras. O poeta é aquele que ama o Pássaro em voo. O poeta voa com ele e vê as terras desconhecidas a que o seu voo leva. Por isso não há nada mais terrível para um poeta que ver um Pássaro engaiolado. Daí que ele se dedique, hereticamente, à tarefa de abrir as portas das gaiolas, para que o Pássaro voe. E é para isso que escrevo: pela alegria de ver o Pássaro em voo.


Somente na velhice nos reencontramos com a infância. Creio que essas coisas que escrevo são uma tentativa de recuperar a felicidade perdida da minha infância. Agora, na velhice, experimento a alegria de ver muitas gaiolas vazias. E a alegria de ver os amigos que sorriem comigo, ao ver os pássaros em voo. Mas há uma tristeza. Sinto-me como Ravel, que, ao ver aproximar-se o fim, dizia, num lamento: "Mas há tantas músicas esperando ser escritas!"


Revista PSIQUE Ciência&Vida, Jul2010, Ano V, nº55.

domingo, 18 de julho de 2010

Singela Homenagem

Espero que se reconheçam , cada qual em uma das  três sílabas: gi, ga e go... meus intelectuais, pais do sentimento, bruxos das tormentosas madrugadas, mas  almas admiráveis, pessoas estimadas , seguidas , brilhantes.... sempre...
       Brinco com as teclas
porque o pensamento
agora salta a outras planícies,
interioridades, desassossegos.
 E, absorta
 nas palavras  dos intelectuais,
pareço formiga
procurando a folha mais verde,
o caminho mais curto,
a sombra mais amena,
o vento mais companheiro....
        E não adianta.
Não sou a luz
do caminho do vôo das borboletas,
 nem a estrada do martírio,
também não quero ser um pássaro ferido...
 Oh, meu Deus... 
sentir tanta dor pra quê?
que buscar , afinal?
      Na intimidade , vou me educando
a ser mais letra que sopro,
mais terra que nuvem;
sou entretanto tanta lágrima
a se derramar sôfrega , atemporal... 
Ah...antes aceitar meu Quixote
que procurar ser alguém real...

terça-feira, 13 de julho de 2010

Vó Nésia...






Do seu rosto nada resta ...


Nem os olhos brilhantes e calmos


Difíceis de se ver pelos óculos


Nem o sorriso sempre tímido


Nem a tez sempre banhada de suor






Do seu corpo nada resta...


Nem o braço incansável de bordar, tricotar


Nem as mãos, sempre  tão asas  ao piano


Dedilhando as músicas mais lindas que ouvi!


Nem suas pernas de tantos caminhos traçados


Descansam à beira mar , acariciando a areia...





Mas é também verdade como não me resta


A menor dúvida: amor não se vai, vó...


E a sua vida, para sempre, está em mim


Mais sábia a cada lembrança


Mais aconchegante a cada lágrima,


De saudade, vó, de muita saudade...


domingo, 4 de julho de 2010

Voo mágico




Vigio-te no íntimo meu

Cresces solerte e devagar

Vais aumentando devaneios

Nos quase quietos

Pensamentos teus.

Quero fugir de mim ...

E retornar ao chão seguro.

Mas é impossível,

porque um vôo mágico

Me surpreendeu!

Ah, coração, estás em apuros!

Minhas Pétalas


Se minhas pétalas
insistem em se despregarem
do centro de tudo,
como posso segura-las
sem mãos de ar profundo?
Sopro-as delicadamente
uma a uma  acima, em frente...
Vão seguindo com elas
os anos e os momentos...
Mas é perfeito!
Tornam-se suaves sombras livres
são perfumes  que invento...

sábado, 3 de julho de 2010

Martírios

Observo o mundo... silêncio...
mas perplexo, o coração todo gira...
E meu ser, ainda ínfimo, lastima
nas celas que eu já bem conheço.

Olhos da noite trazem martírios.
Talvez... deliciosos delírios
momentos insanos e cortesias,
tolices do hábito ou da nostalgia

Pensei : passa logo, madrugada
porque me sufoca dormir sem sono
apresso-me: as ilusões abandono...

Passa lento e longo o pensamento
Sinto-me entorpecer  , cruel veneno...
A verdade é que sou apenas um sonho.